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O lugar da leitura literária: imaginário, alteridade, migrância


Entrevista com Leonardo Tonus


Ler é acolher o outro, acolher o imaginário do outro, acolher, no imaginário do outro, o outro em que, graças à leitura, também nos tornamos.

Leonardo Tonus

 

Fonte: Wix


Nesta entrevista, o escritor, professor e pesquisador Leonardo Tonus (Sorbonne Université – França) aborda potencialidades e desafios da leitura literária no mundo contemporâneo, marcado, entre outras tragédias, pela crise dos refugiados. De que maneira a literatura, ao se constituir como um espaço da alteridade, contribuiria para combater a homogeneização da faculdade de imaginar? Por que ler, especialmente em um contexto de desvalorização do objeto livro, é também tomar uma posição? Como o fenômeno da migrância perpassa a literatura brasileira? Por que escritoras e escritores brasileiros ainda são pouco conhecidos no cenário internacional? Essas são algumas das instigantes reflexões trazidas à tona por Leonardo Tonus.


Leonardo Tonus é professor em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Curador do Salon du Livre de Paris de 2015 e da exposição «Oswald de Andrade: passeur anthropophage» no Centre Georges Pompidou (França, 2016), é o idealizador e organizador do festival Printemps Littéraire Brésilien e do Projeto MIGRA. Publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou, entre outros, a publicação de Samuel Rawet: ensaios reunidos (José Olimpio, 2008), do volume 4 da Chiricú Journal: Latina/o Literatures, Arts, and Cultures (Indiana University Press, 2020) e das antologias La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016), Escrever Berlim (Editora Nós, 2017) e Min al mahjar ila al watan - Da Terra de Migração Para a Terra Natal (Revista Pessoa/ Abu Dhabi Department of Culture and Tourism/Kalima, 2019). Vários de seus poemas foram publicados em antologias e revistas nacionais e internacionais. É autor de três coletâneas de poesia: Agora Vai Ser Assim (Editora Nós, 2018), Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019) e Diários em mar aberto (Folhas de Relva, lançamento em agosto de 2021.


 

RP: Em sua aula inaugural no Collège de France, Antoine Compagnon sustenta que a literatura deve ser lida e estudada porque é uma forma de “de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida”. Como o senhor, que, além de professor e pesquisador de literatura brasileira na Sorbonne Université (França), é escritor, avalia essa capacidade da literatura de colocar em relação experiências tão diversas?


Sim, por detrás de todo ato de leitura (e do ensino da literatura) encontramos sempre o gesto da alteridade. Abrir um livro (ou estudá-lo) não significa somente ler uma história ou buscar compreender as estratégias de escrita que nela se dissimulam. Graças aos livros, viajamos, imaginamos e somos levados a descobrir novas maneiras de existir. Se não há dúvidas no que tange ao papel desempenhado pela literatura e pela leitura no encontro com o outro, uma questão, no entanto, permanece: como se posicionar face a essa diversidade? Como descobrir o outro e aceitá-lo plenamente em sua diversidade sem impor, também pela leitura, a nossa maneira de estar-no-mundo? Afinal de contas, não é porque nos deparamos com outros que, necessariamente, os aceitamos. Aceitar o outro implica muito mais do que tolerância.


O gesto da alteridade, que subjaz o ato da leitura (e do ensino da literatura), requer um comprometimento que, em mão dupla, deve nos conduzir ao reconhecimento tanto de uma fragilidade como de uma superioridade: a nossa e a alheia. Muito se debate hoje acerca do “lugar de fala”, espaço discursivo de poder que conduz ao silenciamento das diversidades. Ora, em minha opinião, tornou-se igualmente imprescindível interrogar o “lugar de leitura”, lugar social a partir do qual lemos o mundo e o mundo dos livros. Sem essa interrogação, não há como se pensar a literatura em seu comprometimento para com o outro.

Pois, para imaginarmos o outro e a ele nos abrirmos, é preciso questionar as formas de poder que também caracterizam o ato de leitura. Como sublinha a pesquisadora Regina Dalcastagnè (UnB), a literatura, da qual participa o gesto da leitura, é um espaço de disputas e de hierarquias de que se beneficiam alguns que podem excluir muitos outros. Se a nossa modernidade soube desconstruir a figura demiúrgica dos narradores clássicos, que tudo sabiam e controlavam, talvez tenha chegado a hora de repensarmos as atuais figuras que se vinculam ao processo de leitura. Em suma, para que a leitura se torne uma verdadeira experiência da alteridade, ela deve ser pensada enquanto prática recíproca do dom. Segundo o sociólogo francês Marcel Mauss, as doações recíprocas estabelecem relações de fortes alianças, de proteção, de assistência mútua e, sobretudo, de hospitalidade. Ler é acolher o outro, acolher o imaginário do outro, acolher, no imaginário do outro, o outro em que, graças à leitura, também nos tornamos.



RP: Quais os principais desafios que a escola enfrenta para garantir que os jovens entendam e valorizem a literatura como um espaço da alteridade? De que maneira a literatura contribui para o exercício da cidadania global?


Os desafios que se apresentam hoje à literatura não se limitam à sua valorização enquanto espaço de reconhecimento da alteridade. Eles dizem respeito também à ressignificação do objeto livro. Se há tempos o livro tornou-se em nossa sociedade um objeto quase exótico, o que dizer do papel que ele ocupa neste mundo confrontado a um verdadeiro “inxílio” doméstico e digital? Vivemos num mundo cada vez mais conectado. Passamos horas intermináveis diante de nossos celulares e computadores, que, de nós, exigem uma temporalidade e uma literalidade opostas ao que suscita o mundo dos livros. Neste mundo dominado pela era digital, muitos jovens (e não somente) perderam a aptidão à leitura em profundidade que permite mergulhar em universos estrangeiros, nos colocar no lugar de personagens, compreender outros pontos de vista do que os nossos ou simplesmente imaginar. E isso é gravíssimo, sobretudo se levarmos em consideração a dimensão política que subjaz o gesto da imaginação. Imaginar não é somente elaborar imagens. Como já evocava Gaston Bachelard, imaginar é possuir a faculdade de distorcer imagens, de se libertar daquelas que muitas vezes nos são impostas e, enfim, de tornar possível, pela imaginação (e pelo ato de leitura), o que a nós se apresenta como inatingível. É nesse sentido que podemos afirmar que a leitura contribui para a cidadania global. Ela permite que nos posicionemos como sujeitos cônscios lutando contra a homogeneização (e a pasteurização) de nossa faculdade de imaginar.



RP: Em 2021, o senhor lançou o Projeto MIGRA, que objetiva discutir, a partir de uma perspectiva transnacional e transdisciplinar, o fenômeno da migrância na contemporaneidade. Quais ressonâncias tal fenômeno tem gerado na produção literária? De que forma escritores brasileiros e estrangeiros podem colaborar para a discussão sobre as vivências – com frequência, trágicas – dos migrantes no passado e no presente?


O Projeto MIGRA que iniciei neste ano visa a estabelecer um diálogo transnacional e transdisciplinar sobre as trágicas migrâncias de nossa contemporaneidade. Nas últimas décadas, o mundo tem se confrontado com um fluxo de deslocamentos migratórios jamais vivido em sua história desde o final da Segunda Guerra Mundial. Segundo dados fornecidos pela International Organization for Migration, em 2019, o número de migrantes contabilizados se elevava a quase 272 milhões de pessoas, 51 milhões a mais do que em 2010. Segundo estatísticas fornecidas pela ACNUR Brasil, mais 79,5 milhões de pessoas encontram-se hoje desenraizadas pelo mundo, das quais 26 milhões de refugiados, 4,2 milhões de requerentes de asilo e mais de 45,7 milhões de deslocados internos. Lembremos, enfim, que, entre os meses de janeiro de 2014 e de setembro de 2018, mais de 28.000 migrantes, dos quais 1.300 eram crianças, desapareceram no mar Mediterrâneo.

Em proporções menores, o Brasil tem sido igualmente destino de novos deslocamentos migratórios. Em dez anos, o número de imigrantes registrados pela Polícia Federal teria aumentado de 160%, o ano de 2015 contabilizando a entrada de 117.745 estrangeiros. Como em outras partes do planeta, a presença desse contingente estrangeiro se explica por diversas razões: catástrofes naturais (haitianos), guerra (sírios), opressão política (congoleses, nigerianos e venezuelanos) e busca de melhores condições de vida (bolivianos). Dentro do panorama geral das migrações internacionais, a situação brasileira surge ainda como relativamente estável, o que não impediu o governo federal de adotar, à imagem de outros países, medidas políticas em matéria de acolhimento, de integração ou de refúgio dessas populações. Tais medidas visam tanto assegurar a sobrevivência física como o controle de uma população cada vez mais fragilizada, indesejada e socialmente invisível, apesar do impacto midiático suscitado por essa questão nos últimos anos.


Não se passa um dia sem que a imprensa nacional ou internacional não anuncie, relate ou comente o desaparecimento de grupos de migrantes pelos mares e oceanos do planeta, o desmantelamento de campos “selvagens” de estrangeiros ou a implementação de novos dispositivos jurídicos de gestão, muitos deles condicionados a interesses políticos, partidários ou ideológicos. Do mesmo modo, a multiplicação de palestras, jornadas de estudos, colóquios e publicações científicas testemunha o crescente interesse por parte da academia sobre essa questão. Tal situação observa-se igualmente no engajamento da cena artística e literária diante da chamada crise do refúgio; crise, sobretudo, social, política, ética e discursiva. Perfomances, exposições, filmes, documentários, peças de teatros, obras roman